Desceu as escadas devagar. Toda a sua atenção presa a cada passo que dava. De orelhas arrebitadas (expressão que a fazia rir pois sempre a lembrava de cães patuscos de orelhas pontiagudas) lá ia dando atenção a cada gemer da madeira que reclamava por uma noite descansada e isenta de pés descalços a sorrateiramente pisarem-lhe as costas.
Era-lhe inevitável dar características humanas às coisas que a rodeavam, só assim podia sentir-se contextualizada, podia fazer parte do quadro.
O pai sempre lhe dissera que era importante estar enquadrada, estar contextualizada. Seguir rotinas, imitar padrões. Quando era mais pequena estas conversas metiam-lhe medo. Estar enquadrada era para ela ser quadro pendurado numa parede. Ser algo esquecido. Seguir padrões já era algo mais divertido e que a fazia sonhar. Imaginava-se a correr desenfreadamente atrás de padrões... axadrezados, listados... invariavelmente ria-se como só uma criança sabe rir até ao momento em que reparava que o pai continuava a falar com ela com um ar muito sério e compenetrado e ela voltava ao abanar da cabeça afirmativamente ao mesmo tempo em que automaticamente lhe saia da boca um "Sim pai!".
As conversas terminavam sempre do mesmo modo, para ela sempre enigmático, em que o pai com um olhar triste (demasiado triste pensava ela) lhe dizia "Não queres ficar como a mamã pois não?!" e ela acenava que não com a cabeça mas sem perceber porque concordara sempre com o pai.
Da mãe tinha a imagem de uma mulher feliz, despreocupada, sorridente. Capaz também ela de correr atrás de padrões, capaz de se imaginar quadro, capaz de ter medo de magoar as costas dos degraus de madeira, de suavemente tocar no móvel da entrada quando entrava em casa e desejar-lhe bom noite, capaz de dar festinhas no sofá enquanto nele se encontrava deitada. Percebeu cedo que herdara todas estas coisas da mãe e desde sempre fizera tudo para o esconder do pai.
Durante anos continuou a acenar que não ao pai e a fingir ser algo completamente diferente da mãe.
Deixou de fingir no dia em que foi na madeira que enquadrava o pai que deu as últimas festas. Terminou quando acariciou aquele rectângulo de madeira maciça pela última vez como se da pele do pai se tratasse.
Passados muitos anos percebeu que afinal não tinha terminado.
Ali estava ela, de camisa de dormir até aos pés e o cabelo já todo grisalho a descer as escadas com cuidado e doçura para não magoar as costas dos degraus de madeira, a acariciar delicadamente o vão da escada, a sonhar que corria atrás de padrões e a sentir-se feliz por nunca ter sido enquadrada num!
Fotografia: Alice in the Midnight Game by Zhang Jingna
(All rights reserved)
Era-lhe inevitável dar características humanas às coisas que a rodeavam, só assim podia sentir-se contextualizada, podia fazer parte do quadro.
O pai sempre lhe dissera que era importante estar enquadrada, estar contextualizada. Seguir rotinas, imitar padrões. Quando era mais pequena estas conversas metiam-lhe medo. Estar enquadrada era para ela ser quadro pendurado numa parede. Ser algo esquecido. Seguir padrões já era algo mais divertido e que a fazia sonhar. Imaginava-se a correr desenfreadamente atrás de padrões... axadrezados, listados... invariavelmente ria-se como só uma criança sabe rir até ao momento em que reparava que o pai continuava a falar com ela com um ar muito sério e compenetrado e ela voltava ao abanar da cabeça afirmativamente ao mesmo tempo em que automaticamente lhe saia da boca um "Sim pai!".
As conversas terminavam sempre do mesmo modo, para ela sempre enigmático, em que o pai com um olhar triste (demasiado triste pensava ela) lhe dizia "Não queres ficar como a mamã pois não?!" e ela acenava que não com a cabeça mas sem perceber porque concordara sempre com o pai.
Da mãe tinha a imagem de uma mulher feliz, despreocupada, sorridente. Capaz também ela de correr atrás de padrões, capaz de se imaginar quadro, capaz de ter medo de magoar as costas dos degraus de madeira, de suavemente tocar no móvel da entrada quando entrava em casa e desejar-lhe bom noite, capaz de dar festinhas no sofá enquanto nele se encontrava deitada. Percebeu cedo que herdara todas estas coisas da mãe e desde sempre fizera tudo para o esconder do pai.
Durante anos continuou a acenar que não ao pai e a fingir ser algo completamente diferente da mãe.
Deixou de fingir no dia em que foi na madeira que enquadrava o pai que deu as últimas festas. Terminou quando acariciou aquele rectângulo de madeira maciça pela última vez como se da pele do pai se tratasse.
Passados muitos anos percebeu que afinal não tinha terminado.
Ali estava ela, de camisa de dormir até aos pés e o cabelo já todo grisalho a descer as escadas com cuidado e doçura para não magoar as costas dos degraus de madeira, a acariciar delicadamente o vão da escada, a sonhar que corria atrás de padrões e a sentir-se feliz por nunca ter sido enquadrada num!
Fotografia: Alice in the Midnight Game by Zhang Jingna
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