quarta-feira, 16 de julho de 2008

Ainda pode descer


"Estive há dez minutos atrás na varanda do meu quinto andar,
a observar a cúpula invisível entre o céu e o enorme lego de betão
e a sentir-me um inquilino passageiro desta pensão de uma estrela
perdida na imensa cidade negra a que damos o nome de universo.
Curiosamente parece que é o único sítio que temos para passar a longa noite que nos espera.
E é aí que eu saio para apanhar a frequência.
Como que a comer um ponto e a cagar um verso.
No meu prisma, a encaixar,
provavelmente no de outros feito um filósofo de merda.
Mas a vida é isso mesmo, um monte de gente a fazer de conta que se entende e ninguém sabe
dizer o que viveu.
Por isso nos pedem que caminhemos alegres para o precipício sem questionar,
porque estaremos sempre longe. Mas longe rapidamente fica perto
e perto rapidamente passa por nós. Eu não quero mandar-te para baixo, mas eu sei que me entendes, tu também tens medo de morrer,
toda a gente tem. Só que normalmente evocamos montes de problemas
para nos convencermos que estamos ocupados a resolver uma situação importante
quando não tem importância nenhuma.
Entretanto o tapete rola
E nós irritamo-nos com a inevitabilidade, e nos nossos sonhos dizemos:
- Torna-me imortal! Torna-me imortal!
Eu não vou aguentar deixar de existir!
E é aí que eu entro para sair da frequência, seduzir-te com os meus sonhos,
Tu não vês como empreendo? E como eu mais um milhão de sonhadores leva com ele muitos braços de outros, acéfalos, na lotaria dos ideais, descrentes, beijando o número do bilhete.
Mas quero dizer-te que a viagem é tua, não quero empurrar-te à força para rua.
Se eu falhar vou passar de deus a carrasco, embalsamado e metido dentro dum frasco,
Para te lembrares da mentira, mas a verdade é que ganhamos sempre."


Manuel Cruz, “Foge foge bandido” – Ainda pode descer



Fotografia: In Hale by Michal Karcz
(All rights reserved)

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