sexta-feira, 25 de julho de 2008

Fernando Pessoa / Álvaro de Campos


“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
[...]
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
[...]
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
[...]
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.”

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos
Tabacaria (Excerto)
(Lisboa, 1888-1935)


Fotografia: The confusion of tounges by Deyan Stefanov
(All rights reserved)

4 comentários:

Anónimo disse...

Amo este texto....OBRIGADO por publicares.

Quem quiser comprar a editora é:

Assirio&Alvim

beijo

deKruella disse...

Tb aprecio algumas coisas desse magano bêbado suicida!

deKruella disse...

Tb não era preciso teres rasgado o livro e chamuscado as folha opa...sua marafada!

Anónimo disse...

ela não é do allgarve kru!!!!

;)