terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Suficientes


Sangrava desmesuradamente, descompassadamente e com a calma que a morte exige.
Uma morte nunca deve ser repentina. Ao menos que dê tempo para uma despedida!
Não telefonou a ninguém, não gritou, não chamou pela ambulância nem pelos bombeiros. Sabia-se ferida de morte. Sabia que não havia solução.
O sangue escorria-lhe pelas mãos, caía em gotas grossas pelos joelhos e daí para formar uma poça no chão. Deu por si a ver o seu sangue a ganhar vida própria, a ganhar direcção. Parecia correr, fugir do seu corpo para se depositar no meio do chão. Amaldiçoou por instantes o próprio sangue. Que sangue era este, este sangue que sempre fora seu, que sempre andara livremente pelo seu corpo, sem quaisquer tipo de limitações, que sempre teve toda a liberdade e que agora a recusava, que agora lhe negava a sua presença por caminhos feitos de veias, que agora se recusava a aquecer o seu corpo, a manter-se fonte de vida invisível?
Foram breves os momentos de ira e de incompreensão. Acabou por aceitar que aquele sangue não era já mais o seu. Assim como aquela vida a abandonava aos poucos e era cada vez mais vida fora de si.
Por momentos sorriu com a ideia de que seria o chão a ganhar nova vida enquanto ela se transformava em matéria inerte e fria no chão.
Sangrava desmesuradamente e enquanto sentia que o seu corpo já pouco aguentaria tentou perdoar a quem lhe tinha feito mal. Descobriu que há crimes que nunca devem ser perdoados... Tentou enfim perdoar a quem a tinha magoado e descobriu que há mágoas que nem um mar de sangue consegue disfarçar.
Por fim e ao ver as últimas gotas de sangue a saírem do seu corpo decidiu que iria apenas lembrar o amor que valia a pena guardar.
Cada gota uma pessoa. E embora não fossem muitas foram as suficientes para estancar o seu sangrar!


Fotografia: I am the drain by Jenni Tapanila
(All rights reserved)

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