quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Receitas!


Na urgência de agarrar as palavras certas peguei nas consoantes erradas. Agora tenho mil e um fragmentos do abecedário e não lhes consigo encontrar sentido.
Agarro nas consoantes e tento juntar-lhe as vogais, mas não passam de 'ui's' e de ai's e desisto de juntar o que não pode ter união.
Deixo-as a repousar como eu me lembro de ver a minha mãe fazer à farinha depois de lhe juntar o fermento. Deixo tudo a descansar com uma mantinha a tapar.
Deixo tudo a abafar e a fermentar e passadas umas horas volto a tentar.
Volto ao emaranhado de consoantes e de vogais e percebo que falta algo. Volto à receita que nunca li, aos ingredientes de que nunca ouvi falar e junto-lhe vírgulas e ífens, pontos finais e reticências e volto à penitência.
Misturo tudo muito bem misturado, chego a dar murros àquela estranha manta de retalhos e volto a deixar repousar.
Deixo tudo a abafar e a fermentar e passadas umas horas volto a tentar.
Aos poucos o emaranhado ganha consistência.
Aos poucos ganha sabor e começa a apelar aos sentidos.
Agarro em consoantes e junto-lhe as vogais. No tabuleiro aparecem-me as palavras feitas. Pego nelas e com todo o cuidado junto-lhes a pontuação. Faço-o com amor e dedicação. E dito ao vento as palavras que mesmo sendo banais vêm do coração.
Aos poucos tenho um tabuleiro cheio.
Levo-as ao forno e quando lhes sinto o aroma no ar retiro-as devagar.
E assim se fez um texto!

Fotografia: Words by Linus
(All rights reserved)

Agarra-me!



Agarra-me! Com a força de mil heróis, com a força de mil braços e não penses mais em me largar!

Possui-me com a malvadez de mil demónios e nem penses em confessar-te.
Limita-te a agarrar-me. Limita-te a abraçar-me. Limita-te a estar.
Mas não te limites! Ultrapassa-te! Ultrapassa-me!
Mas não deixes de me agarrar! Não deixes de fazer dos teus braços os meus braços, das tuas mãos a minha pele, do teu cheiro o meu aroma. Não deixes de fazer de nós um número apenas!
Agarra-me com a suavidade com que só tu me sabes agarrar. Com essa forte doçura, com esse carinhoso apertar.
Não deixes de me fazer sentir segura, de me fazer sentir tua, de me fazer voltar a sonhar.


Fotografia: Black and light by Mehmet Turgut
(All rights reserved)

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Suficientes


Sangrava desmesuradamente, descompassadamente e com a calma que a morte exige.
Uma morte nunca deve ser repentina. Ao menos que dê tempo para uma despedida!
Não telefonou a ninguém, não gritou, não chamou pela ambulância nem pelos bombeiros. Sabia-se ferida de morte. Sabia que não havia solução.
O sangue escorria-lhe pelas mãos, caía em gotas grossas pelos joelhos e daí para formar uma poça no chão. Deu por si a ver o seu sangue a ganhar vida própria, a ganhar direcção. Parecia correr, fugir do seu corpo para se depositar no meio do chão. Amaldiçoou por instantes o próprio sangue. Que sangue era este, este sangue que sempre fora seu, que sempre andara livremente pelo seu corpo, sem quaisquer tipo de limitações, que sempre teve toda a liberdade e que agora a recusava, que agora lhe negava a sua presença por caminhos feitos de veias, que agora se recusava a aquecer o seu corpo, a manter-se fonte de vida invisível?
Foram breves os momentos de ira e de incompreensão. Acabou por aceitar que aquele sangue não era já mais o seu. Assim como aquela vida a abandonava aos poucos e era cada vez mais vida fora de si.
Por momentos sorriu com a ideia de que seria o chão a ganhar nova vida enquanto ela se transformava em matéria inerte e fria no chão.
Sangrava desmesuradamente e enquanto sentia que o seu corpo já pouco aguentaria tentou perdoar a quem lhe tinha feito mal. Descobriu que há crimes que nunca devem ser perdoados... Tentou enfim perdoar a quem a tinha magoado e descobriu que há mágoas que nem um mar de sangue consegue disfarçar.
Por fim e ao ver as últimas gotas de sangue a saírem do seu corpo decidiu que iria apenas lembrar o amor que valia a pena guardar.
Cada gota uma pessoa. E embora não fossem muitas foram as suficientes para estancar o seu sangrar!


Fotografia: I am the drain by Jenni Tapanila
(All rights reserved)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Vontade de voltar


Foram muitos os kms percorridos, muitos os comboios apanhados e os perdidos, muitas as viagens de barco em mares serenos e em mares revoltos. Foram muitos os autocarros dos que se vêm as vistas das cidades e dos que nada se vê devido a grafitis exagerados. Foram muitos os passeios calcorreados, muitos os encontros exagerados, muitas as paisagens verdes e os edifícios altos. Os apontamentos, as fotografias, os cafés com perfeitos desconhecidos, os números de telefone trocados, as inconfidências de infância contadas. Foram muitos os postais enviados, muitos os telefonemas efectuados e outros ignorados. Foram muitos os aeroportos, muitas as estações de comboios apinhados, algumas malas perdidas e noutras cidades reavidas.
Foram muitas horas feitas dias, muitos dias feitos uma vida, foi uma vida feita com a bagagem devida.
Foi o trazer a casa às costas e fazer da vida uma aposta.
Foram muitos os kms percorridos
e trago os pés doridos de tanto andar
e trago os braços caídos de tanto tempo carregar a Vontade de voltar!


Fotografia: Dawn by Sue Anna Joe
(All Rights reserved)

sábado, 13 de dezembro de 2008

Devagar


Fui devagar
fui com a pressa que era a necessária
fui sem pressa de chegar
Eu não fui... apenas deixei-me ir
apenas deixei-me levar
sem saber onde iria parar.
Eu não vi... nem tentei espreitar
não quis saber para onde me levava
nem quis saber quando isso iria parar
apenas deixei-me guiar.
Eu não quis... nem tive vontade de querer
apenas me deixei prender
por amarras sem perder
por nós sem fim
Eu fui devagar
quando a vontade era de apressar
quando a vontade era de correr
e de apenas te encontrar
Chegada ao pé de ti finalmente percebi
afinal fugia de mim
afinal corria para mim
afinal continuei sem me encontrar
Eu fui devagar
apenas porque já não tinha
motivos para me apressar!


Fotografia: Saatleri ayarlama enstitusu by Hüseyin Türk
(All rights reserved)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

E se eu te disser?


E se eu te disser que estou quase a morrer?
que é uma dor profunda
que foi um golpe abismal
que não dá para 'arranjar'
E se eu te disser que não te sei explicar?
que sinto os membros congelados
que sinto um peso no peito
que me sinto a desvanecer
E se eu te disser que me sinto a enlouquecer?
que me apetece gritar
que me apetece correr
que me apetece chorar
E se eu te disser que a culpa é minha?
que quero pôr um fim a esta agonia
que quero apenas conseguir escrever
E se eu te disser que as palavras morreram?
que me secaram na boca
que desapareceram do meu peito
que me deixaram sem alento
E se eu te disser que nem sei expressar
que preciso delas para sobreviver
que preciso delas para amenizar o sofrimento
E se eu te disser que sempre foram os meus melhores amigos
que são os parágrafos que me dão carinhos
que são as vírgulas que me deixam respirar
E se eu te disser que as palavras morreram?
Irás perceber que preciso delas?
Irás ajudar-me a encontrar
o que eu preciso para continuar?


Fotografia: BII by Mehmet Turgut
(All rights reserved)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

E se?


E se fosse preciso apenas um salto?
E se fosse preciso apenas isso?
será que faria o que é preciso?
E se fosse preciso apenas saber?
Saber o que é preciso fazer
saber que é disso que preciso
Será que me atiraria no abismo?


Imagem: AxD by Michal Karcz
(All rights reserved)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Voltar a dormir


Enchi-me de coragem e peguei no aspirador e logo se seguida no balde e na esfregona. Quando algo me atormenta vingo-me na casa e ela até que agradece.
Aspirei o sofá e a colcha da cama para apagar os vestígios de um cão que tem teimado em dormir mais quentinho. Não o culpo. Eu até agradeço a companhia (e o calor) dele.
Tomo um duche rápido e saio decidida para uma noite gélida. Destino: a aula de yoga que me espera para me acalmar as inquietações e descontrair o corpo.
Saio a meio porque o corpo reclama com dores e quando chego a casa percebo que não é apenas o corpo. Sinto-me incapaz por nem numa aula de yoga conseguir aliviar os medos e as tormentas.
Cheia de frio coloco o arroz no micro-ondas apenas para descobrir que já está azedo. Pego na carne que para lá caminha e acabo mesmo por me contentar com um hambúrguer grelhado perdido algures no meu congelador.
Quase que me deixo adormecer no sofá enquanto vejo umas tatuagens a serem feitas num qualquer programa da televisão.
Chego ao quarto e refilo com o aquecedor que não cumpriu a sua função. Adormeço de aquecedor ligado e cheia de frio.
Acordo com o mesmo humor e com o mesmo frio.
O corpo reclama por um descanso que nem sequer merece, mas que mesmo assim não deixa de o reclamar.
Acordo a desejar que fosse novamente noite só para poder voltar a dormir...


Fotografia: Sadness2 by Lidia Estrada
(All rights reserved)